«A Liberdade e a Europa: uma construção de todos», Parlamento Europeu, Bruxelas, Janeiro a Junho 2021

Publicado a 3 Fevereiro 2021
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Entre Janeiro e meados de Junho de 2021, no Parlamento Europeu, em Bruxelas, a exposição “A Liberdade e a Europa: Uma construção de todos”, organizada pela Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, colocou em diálogo duas importantes coleções de arte: a Coleção de Arte Contemporânea do Estado Português e a Coleção do Parlamento Europeu.

Obras de Julião Sarmento, Jorge Martins e Pedro Calapez

A Europa, a liberdade da arte e a sua sociabilidade específica

Instintivo, reflexivo, reivindicativo ou legislativo, o conceito de liberdade humanista está na base do pensamento moderno europeu, pelo menos, desde o Iluminismo. Na sua dimensão filosófica, política e social, o exercício pleno e responsável da liberdade traduz a emancipação do ser humano no uso racional do livre arbítrio, constituindo-se ainda, apesar da sinuosidade titubeante da sua consolidação, como bandeira essencial no quadro da Europa contemporânea. E tal como em 1955, no contexto do pós-guerra, Jean Monnet declarava: “fazer a Europa é fazer a Paz”, o “sonho europeu” hoje concretizado exige igualmente a defesa quotidiana da liberdade como valor intrínseco à sua identidade cultural. O conjunto de valores que daí advêm, conduz um projeto plural e complexo que a todos responsabiliza face ao compromisso de paz fundador da União Europeia e da sua ideia de uma comunidade de Estados. Nessa medida, o empenho dos artistas na construção do valor da liberdade deve aqui ser sublinhado como um dos contributos mais persistentes e subliminarmente influentes, definido entre a vontade individual e a vida coletiva das sociedades.
Na verdade, a arte tem vindo a conquistar nos últimos dois séculos uma importância decisiva na expressão ética da liberdade humana. Desde o período romântico, com a afirmação exponencial da criatividade individual, e o valor da sua idiossincrasia, a arte projetou-se, lenta mas progressivamente, como um campo aberto ao desenho de todas as liberdades, a partir dos seus contributos particulares e da sua inegociável diferenciação, que contrariava as convenções do ensino artístico e os seus protocolos de valorização em torno da uniformização técnica, moral e expressiva. Se, desde aí, a cada artista foi dado espaço para a confirmação de uma liberdade que converteria a arte moderna num dos grandes palcos da sua consciencialização prática, ativada afinal em cada obra e exposição, isso traduziu uma força de manifestação do experimentalismo e da ousadia essenciais ao progresso social que a Europa representa. Cada obra é diferente das demais, cada artista apresenta valores éticos distintos, propostas estéticas e conceptuais necessariamente diferenciadoras, promovendo assim um profundo sentido da pluralidade humana e das suas infinitas hipóteses de significação.

Obras de Eduardo Batarda e Maria Helena Vieira da Silva

Ao mesmo tempo, uma obra de arte existe também como fator de agregação ou comunicação humana, na intersubjetividade desencadeada entre os seres humanos que se disponibilizam para esse efeito relacional de sociabilidade. Note-se que, como defende o curador francês Nicolas Bourriaud, “a arte sempre foi relacional em diversos graus, ou seja, como factor de sociabilidade e fundador de diálogo”, e se a imagem artística assumiu como virtualidade o seu poder de conexão entre criador, obra e recetor, a verdade é que, ao contrário da televisão ou mesmo da literatura, que remetem para o sentido da experiência privada – e se inclusivamente o cinema e o teatro, apesar de convocarem o coletivo, apenas deixam espaço à discussão após o termo do espetáculo –, “a arte (as práticas derivadas da pintura e da escultura que se manifestam sob a forma de uma exposição) presta-se particularmente à expressão desta civilização de proximidade, dado que reafirma o espaço das relações”, pois apresenta-se sempre no espaço público da arquitetura, da praça à galeria, produzindo “empatia e sentimento de partilha, gerando assim
vínculos”1 . Com efeito, avança Bourriaud, “numa exposição, mesmo quando se trata de formas inertes [em pinturas, esculturas ou objetos], estabelece-se a possibilidade de uma discussão imediata, nos dois sentidos da palavra: eu percebo, eu comento, eu discuto, num mesmo espaço-tempo. A arte é o lugar de produção de uma sociabilidade específica”, desenvolvendo assim, na verdade, o sentido e o aprofundamento da obra de arte como um “interstício social.”2

Inauguração a 20 Janeiro 2021, com a presença do Presidente do Parlamento Europeu David Sassoli, do Primeiro Ministro António Costa e do Curador da Coleção do Estado David Santos


No fundo, a arte será talvez apenas mais um modo específico de conhecimento ou de elaboração estética e cognitiva em sociedade e, enquanto tal, promoverá sobretudo, nesse diálogo, uma transformação individual do sujeito recetor. Podemos defender, por isso, seguindo o pensamento de Jacques Rancière, que a arte não transforma de um modo direto os destinos da sociedade e o seu trânsito político, mas apenas o nível da experiência sensorial e intelectual de cada um dos observadores. Dessa forma, porém, a obra de arte tenderá a refletir-se na mundividência e na ação quotidiana do recetor, como espécie de alargamento ou ampliação do seu sentido crítico, na complexificação dos significados da arte e da vida, preparando-o, por exemplo, para uma mais consciente ação de cidadania.3

Obras de Nikias Skapinakis e Paula Rego (pormenor)

Por isso, a obra de arte deve ser a expressão ou a experiência do princípio da liberdade, pois só desse modo poderá enfrentar todas as espécies de dogmas e estereótipos, e cumprir uma das suas funções mais dignas, promover o aprofundamento da sensibilidade e da consciência de cada um na sua relação com o outro (individual ou coletivo). Recuperemos, a propósito, as palavras de Brian Holmes: “numa época saturada pelos meios de comunicação social e pela publicidade, a dimensão estética tornou-se uma zona decisiva de interação social.”4 Será essa “interação”, essa
«sociabilidade específica» e «relacional» que a arte contemporânea aqui presente pretenderá subtilmente ativar. Sublinhe-se que os espaços institucionais ou informais que promovem a arte representam uma simbologia de legitimação onde as exposições constituem o principal espaço de troca na economia política da arte, e onde o sentido é construído, mantido e, por vezes até, desconstruído. Em parte espetáculo, evento social e histórico ou dispositivo de estruturação, as exposições — especialmente de arte contemporânea — estabelecem e administram os significados culturais da arte. Não esqueçamos, por essa razão, que as exposições administram igualmente a criação de momentos de discussão e debate público, em interação com as propostas artísticas, mas também com as diferentes leituras nesse contexto produzidas, que se traduzem sempre na assimilação individual que cada um dos observadores faz dos significados que transitam nesse espaço.

Parlamento Europeu, Bruxelas, Janeiro 2021

Por outro lado, as obras de arte contemporânea de artistas portugueses que podem ser observadas na presente exposição do Parlamento Europeu, representam todas elas, afinal, uma hipótese de reconhecimento e ativação do exercício da liberdade, tanto a liberdade ética que conduziu os criadores aos seus modos particulares de afirmação artística, como a liberdade de interpretação de cada um dos seus observadores ocasionais, mesmo que esta última esteja em parte condicionada pelo vínculo proposto na assinatura curatorial. Mas em torno de um conjunto de vinte obras, pertencentes, em partes iguais, à Coleção do Parlamento Europeu e à Coleção de Arte Contemporânea do Estado Português, a curadoria definiu um jogo de combinação estética, reflexiva e emocional, cujo aparato será ele próprio o resultado da liberdade que define a sua ação no espaço europeu em que vivemos. Deste modo, podemos observar como a liberdade de cada um implica sempre com a liberdade de todos, exigindo-nos a cada dia a sua defesa, mas também o seu uso consciente e responsável. Só assim poderemos continuar a construir uma Europa de valores, livre e solidária.


David Santos
Curador da Coleção de Arte Contemporânea do Estado


1 – Nicolas Bourriaud, Esthétique relationnelle (1998), 3rd ed. Paris, Les presses du réel, 2001. p. 47
2 – Idem, p. 48.
3 – Jacques Rancière, O espectador emancipado (2008) (trad. portuguesa: José Miranda Justo). Lisbon, Orfeu Negro, 2010.
4 – Brian Holmes, ‘A arte e o cidadão paradoxal’, in Às Artes, Cidadãos. Porto, Museu de Arte Contemporânea de Serralves, 2010, p. 83.


Curadoria: David Santos
Datas: 20 Janeiro a 15 junho de 2021.
Local: Parlamento Europeu, Bruxelas, Bélgica.
Organização/Produção: Estrutura de Missão para a Presidência Portuguesa do Conselho União Europeia, 2021.

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